Archive for fevereiro 2008

Beija-Flor

domingo, fevereiro 24, 2008 Comments Off

Sobre o sofá escuro frente à grande janela ele se mantinha deitado, sem expressão nos olhos, nem nada que declarasse o mínimo sinal de vida, dentro do largo cômodo.

A cidade que se via lá fora compartilhava do mesmo espírito, ou falta de, se mostrando vazia e inerte a si mesma, por sob nuvens abstratas, volúveis, tão mecânicas como a televisão ao canto, muda, falando alto, sozinha, para si, e mais ninguém.

E em contraste a todo o cinza daquele universo, daquela cidade inóspita lá embaixo, lá longe, o beija-flor chega rápido, com toda a energia que falta a tudo aquilo, e pára frente à grande janela, com aquele mundo em rascunhos de Manet ao pano de fundo, intensificando todo o vazio que lá existia, e intensificando toda a vida e cores de Monet em si mesmo conforme batia suas asas fortemente, como uma surpresa a tudo que poderia se esperar de tal lugar, como um presente, um prêmio, um milagre. Como comprovando que apesar de todas as dores e tristezas dos seres, ainda existe uma linha de esperança, de felicidade... Que as cicatrizes do mundo podem sim ser curadas, com um beijo, um único beijo, o beijo que salvará todos, de todas as suas dores, suas agonias... O beijo que salvará todos os corações de suas desilusões, colocará esperanças em todos os que já perderam-nas. O beijo que trará a esperança. A Esperança.

Asas que batem forte, asas improváveis, insperadas... Mas que lá estão. Batendo forte. Nos fazendo lembrar que, sim, o bem ali existe.

De Pesos e Levezas

segunda-feira, fevereiro 18, 2008 Comments Off

- E se nos jogarmos daqui agora?

- Não faria sentido.

- Não é para ter sentido. É para ter uma solução.

- Essa não é a solução.

- É sim. A solução é sempre a mesma. Voar. Isso simplifica tudo. Voar.

- Sim... Voar.

- Então? E se nos jogarmos daqui agora?

- Não faria sentido.

- Não é para ter sentido. É para voar.

- Você não voaria.

- Você não voaria.

- Eu cairia.

- Sim, você cairia. Por quê? Você sabe por que.

- Porque não me faria sentido.

- Você quer, mas não acredita, não te faz sentido... Então você cai. Você cairá. Sim, sempre.

- E te faz sentido?

- Não é pra ter sentido. É pra voar. É a solução. Ir. Ir. Assim, estalando os dedos... Fácil assim.

- Não é fácil assim. Não é leve assim. É sempre mais amplo, complexo... Profundo. Sempre maior. Mais pesado. São muitas questões, muito a se discutir. É muito.

- Todo esse peso que vê é justamente o que te faz cair. Você não conseguirá voar comigo enquanto não se soltar de todas essas correntes, esses pesos, isso tudo aí, tudo isso. Solte-se.

- Mas não faz sentido.

- Não é pra ter sentido. É pra voar. Voe comigo. Voe comigo.

- Afaste-se daí. Venha! Volte aqui! Não faz sentido! Volte!

- Não é pra ter sentido!

- Solte minhas mãos! Não! Não faz sentido!

- Não é pra ter sentido! É pra voar!

- Não faz sentido!

- Pra voar! Voar! Voar!

Amor Secreto

segunda-feira, fevereiro 11, 2008 Comments Off

Ela enche sua taça de um vinho caro qualquer que havia comprado, e então caminha lentamentamente até a sala de estar, e à grande parede da escada, que dava acesso ao segundo piso.

Com um sorriso nos lábios suave como o vinho que bebia delicadamente, admira, parada, as várias fotografias ao longo da parede; e nas outras mesinhas ao longo da espaçosa sala. Então seu sorriso começa a escorrer de seu rosto, sendo tomado por um sutil olhar de medo. Um medo suposto, incerto, futuro.

Morde os lábios enquanto começa a caminhar, então, até as fotografias. Uma por uma então, começa a retirar cuidadosamente as fotografias de suas molduras. E então caminha até a parede, onde pára sobre os degraus da escada, admirando os grandes quadrados contando histórias de si.

Ela bebe mais um gole, e apoia a taça sobre uns dos vários degraus, deixando as mãos livres para cobrir os quadros com os grandes lençóis que havia tirado de sobre os sofás, quando pela sala passara.

Não cobre todas as fotografias, assim como não havia tirado todas as fotografias de suas respectivas molduras. Só aquelas. Aquelas.

Ela sorri novamente no centro da sala, bebendo delicadamente, enquanto olha os grandes quadros cobertos e as várias molduras vazias. Sorri graciosamente. Não sente mais medo.

A maçaneta gira conforme ele atravessa a porta, com o mesmo largo sorriso de todos os dias. Sorriso de alívio de quem chega no lugar que quer, que deseja, que ama. Nem sequer tem tempo de fechar a porta atrás de si antes que seu sorriso escorra gelado por seu corpo, fazendo-o estremecer, ao não ver sequer uma de suas várias fotografias com ela. Seu olhar interrogativo direciona-se a ela.

Ela sorri como sorriu na segunda vez em que o viu. E na terceira. E em todas desde então. Mas sentindo que seu sorriso de resposta não seria resposta suficiente, usa seus lábios para contar de seu coração.

- Senti medo.

Em um único segundo a partir dessa resposta, inúmeras imagens e palavras e sentenças e estrofes poéticas tristes e felizes e dúbias e incertas passaram pela cabeça dele. No segundo seguinte, libera o óbvio.

- Medo de quê?

Em mais de um único segundo, ela sintetiza em sua cabeça uma resposta coerente que ele consiga compreender como os sentimentos que ela sentiu a fizeram compreender também.

- Tive medo de que as pessoas descobrissem nosso amor.

Em muito mais de um único segundo, ele assimila as poucas palavras que ela lhe dizia, que diziam muito mais do que ele esperava que pudessem dizer. Enquanto ela, segurando carinhosamente sua taça ao virá-la em direção a seus lábios, olha para ele pacientemente, ele concorda com cada palavra que ouviu, e principalmente, com todas as outras não ditas, escondidas por sob o silêncio do subentendimento.

- Sim, elas nunca o compreenderiam. Vulgarizariam-no como fosse a pintura do maior artista do mundo taxado de prostituta pútrida.

- Pior. Elas poderiam roubá-lo. O que temos é o ouro de todos os pobres deste mundo. Vivemos entre mendigos desnudos trepidando à nossa volta. Temos todo o alimento que lhes falta. Nossas fotografias são a vitrine da padaria. Não podemos correr o risco de sermos assaltados. De todos os bens que eu possa ter, meu amor é o único que não posso perder. Ele é meu. E seu. E só.

O sorriso dele volta a seu rosto, conforme vira a taça que havia enchido enquanto ela falava. Um sorriso sincero. De consciência.

- Sim... Muitos dariam tudo para ter o que nós temos. Muitos morrerão sem saber o que é isso que nós temos.

Ele ergue a taça em sinal de respeito, e vira-a em sua boca novamente, bebendo em respeito a eles, os mendigos do mundo, lamentando por eles que nunca saberão o que é o ouro.

Em Um Minuto, Por Um Segundo

domingo, fevereiro 03, 2008 Comments Off

Sem querer, ele esbarra no relógio na parede, que cai, estilhaçando o vidro que protegia os ponteiros. Com a queda, os ponteiros entortam, mas ele não percebe. Recolhe os pedaços de vidro e recoloca o relógio em seu lugar.
Os ponteiros continuam a bater normalmente, durante alguns segundos, até que o longo ponteiro se encontra com o médio, e lá permanecem. Com o segundo entrelaçado ao minuto, o tempo não andava.
Pareceria poético e belo. Eles se encontraram e não mais quiseram se soltar. Sob regras que diziam que deveriam se cruzar a todo minuto e não por mais que um segundo, foram contra tudo e todos e, frente a olhos inexoráveis, abraçaram-se forte, derrubando todas as lógicas, regras, leis e ordens. O mundo ignoraram, e o tempo pararam.
Mas o tempo precisa continuar a andar. É preciso que concessões sejam feitas. Os ponteiros precisam abrir mão daquilo pelos propósitos maiores; pelo tempo; pelo mundo. Precisam se soltar, se libertar um do outro para que a ordem se reestabeleça, para que tudo volte a funcionar. E com a tristeza de uma consciência não desejada, os ponteiros se desentortam. Soltam-se. Libertam-se.
Despedem-se.
A ordem flui novamente, com as chagas dos preços que se pagam, cicatrizes de tudo que deve-se abrir mão por.
E o segundo se vai, com a minimo consolo de poder estar de volta dentro de um minuto, por um segundo, pelo resto dos tempos.

Destempo

sábado, fevereiro 02, 2008 Comments Off

Ele sai correndo atormentado pela casa. O piso torna-se escorregadio com suas lágrimas. Pega todos os relógios de parede, um por um, arranca o fundo, e coloca-os de volta com a frente virada para a parede. Ao terminar de virar o último, o grande na parede principal da sala, senta-se numa cadeira virado de frente para o relógio invertido, e começa a enxugar as lágrimas, tentando conter o choro.

Seu irmão, vendo-o, absolutamente sem compreensão, fixa o olhar nele ao perguntar séria e lividamente.

- Que porra...!? Por que fez isso com os relógios!?

Ele começa a tentar responder, e ao perceber que só o que sai de seus lábios são grunhidos em notas desformes, sentindo o choro sair de dentro de si, pára e respira, tentando se recompor novamente. Com calma, usando longas pausas, responde, sem ousar tirar os olhos do grande relógio na parede, que agora batia seu longo ponteiro em sentido inverso.

- Estou esperando. Daqui há algumas horas, estaremos de volta no hospital, na sala com ela. Estou esperando voltar a chance que perdi de dizer a ela que a amo.
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