Archive for setembro 2012

Um olhar

sábado, setembro 29, 2012 § 1

Dois quilos, ela disse.
Ele pensou nos olhos dela quando selecionou a peça mais atraente e menos gordurosa, ela era magra, e tão agradável de se ver, poderia picar seus dois quilos de carne para sempre para segurar sua presença um pouquinho mais próxima da dele, mas ela não era para ele. Deveria ter um marido para o qual se preparava para cozinhar, e talvez dois filhos, era nova, mas eram dois quilos, queria que tivesse-lhe pedido meio, apenas meio, cozinharia um pouco para si, solitária, deixaria um pouco para o dia seguinte, solitária, por que não meio? Poderia dizer algo engraçado e trocar um sorriso sequer, mesmo que fosse meio quilo de sorrisos, se contentaria com pouco, mesmo que pouco fosse muito para ele. Mas não, pesava o saco na balança e o que a balança esfregava em sua cara eram dois quilos e oitenta e dois gramas de pura tristeza, ela iria embora e cozinharia para outro que não ele, não podia fazer mais nada. A etiqueta que colocava agora era o seu adeus silencioso, e o que mais o torturava era saber que ela nunca saberia de seu amor, mesmo que fosse rápido, ligeiro, só meio quilo de amor, desperdiçado e abandonado. Talvez se tivesse lhe confessado, esta estória seria outra. Ao pensar em seus olhos, ele poderia ter enxergado a verdade dela. Saberia quantos filhos, maridos, amantes ela tem apenas pelos seus olhos, mas tudo que ele conseguiu enxergar foi sua própria estória com ela e o que sabemos agora é que essa estória não poderia acontecer, pois ela se foi para o caixa, com seus olhos, suas verdades e seus dois quilos de mistério.
A fila não era grande, mas o tempo passa diferente para cada um, e para ele o tempo corria, a perderia de vista, perderia seus olhos, e só o que seu corpo conseguiu fazer foi abandonar sua faca sobre a tábua, dar a volta no balcão e ir atrás dela.
Ela já está com sua sacola em mãos e se vai, e o que seus olhos não lhe disseram era que ele vinha logo atrás, as manchas vermelhas gritando por atenção sobre o uniforme branco, suas botas fazendo um barulho maior do que sua intenção, mas ela não o nota, o carrega até sua casa, e ela entra, solitária.
Ele aguarda do lado de fora, não conseguiria enfrentar os olhos dela, dizer que a amava desde já, e se sua família chegasse?
Se sentou em uma mureta e com seus olhos sobre a casa aguardou o início de uma estória alheia, um protagonista que não ele para abraça-la e não mais solta-la, filhos para beijar e lhe preencher a vida, amigos para dividir os anseios, mas tudo o que o tempo mostrava era ele próprio sentado em uma mureta. Ninguém chega, ninguém se ama, ninguém se preenche além da noite com suas estrelas. Como ele poderia aceitar que aqueles olhos estivessem sozinhos? Sem alguém para se confessar, alguém para se refletir. Não poderia permitir.
Se levanta e vai em direção a porta, desarmado, desnudo, carregando apenas seu amor, mesmo que breve, mesmo que imprevisível, era seu, e era tudo que podia dar, tudo para ter de volta aquele olhar, deixar o penetrar, deixou a coragem o alcançar e bateu na porta uma vez apenas, sabia que ela o ouviria, e o ouviu, a porta abriu, mas não o viu.
Ele a vê, vê seu corpo, mas ela não abria os olhos.
Ela o recebe, o deixa entrar. Ele se senta, a chama pelo olhar, mas era inútil, ela mantinha os olhos fechados, e assim se senta a sua frente. Permite que ele se prepare, se encontre, para assim poder chegar, mas ele permanece em silêncio. Quer dizer a ela tantas coisas, tantos amores, entrega-la tantos quilos de paixão, mas ele não vê seus olhos, o protagonista de sua agonia. Ela os mantém em segredo, confinados, sabe de sua paixão, sabe que ele os ama, percebeu ao vê-lo anteriormente, e por isso os cala, cala seus olhos, silencia tudo que eles poderiam contar, congela todos que eles poderiam hipnotizar. Seus olhos em silêncio param o que o tempo poderia revelar. E ele se aflige, se perde, não encontra a origem de seu desejo, não encontra seu propósito, seu motivo. Ela está ali, mas ele se vê só, seus próprios olhos estão sozinhos, não se refletem, não se espelham, apenas permanecem, na rima do silêncio. Sem seu olhar, ele não pode mais amar, e ela sabe disso, o testa, o priva de suas joias, quer saber a distância de seu amor, se o mesmo a alcança ou se reserva-se a apenas seus olhos, e com o silêncio dele ela ganha, estava certa, está só, como tantas outras vezes, e para sempre será, mas isso ele não quer, ela não pode viver só, seus olhos não podem estar sozinhos. Mesmo que ele não a veja por completo, ele a quer bem, a quer quente, a quer macia, mesmo se ela não confia a ele a riqueza de seus olhos. Sente crescer em si o desejo do cuidado, do afeto, quer cuidar de seus olhos mesmo se eles se ocultam, mesmo se mantém-se em segredo, quer iluminá-la mesmo se ela reserva-se ao escuro, mas não tem como dizer isso a ela, seus próprios olhos estão falando sozinhos, ela não o vê, não vê os olhos deles contarem a ela o quanto a querem mesmo sem vê-la. Com seus olhos fechados, tudo que ela vê é silêncio, é vazio, é solitário, ela está novamente só, pois ele não diz, não se demonstra, não confessa que deseja apenas seus olhos, e ela não aguenta mais o esperar, já entendeu que ele não a quer, não é preciso mais se prolongar, e então decide dizer que se vá.
Abre seus olhos para vencer essa disputa, e está pronta para olhar nos olhos dele e mostrar que seus olhos são tudo o que ele quer, mas o que ela encontra é um beco sem saída. Ele está ali, mas com os olhos fechados.
Está disposto a viver sem vê-la para tê-la bem, tê-la quente, tê-la macia, não quer seus olhos, quer seu amor, mesmo que para isso precise viver no escuro, e ela o vê assim, amando-a mesmo no escuro, e assim se percebe equivocada. Não está mais sozinha.
Levanta-se e vai em direção a ele, e encosta seus finos dedos nos olhos dele, que abre aos pouquinhos, deixando-o iluminar-se. Ele a vê, ela o vê, finalmente podem-se refletir, preencher um ao outro. Ela perdeu a disputa, estava equivocava, mas ganhou uma riqueza maior. Ganhou os olhos dele.
Todos os direitos reservados. Tecnologia do Blogger.