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De Pétalas e Pólen

terça-feira, novembro 20, 2012 § 0


Por muito tempo, ela não veio. Não carregava mais meu perfume, meus odores e frescores.
Via-me nela, assim como por muito tempo ela se via em mim. Confesso que estávamos conectadas a um ritual diário de ver-se, reconhecer-se, reapresentar-se. A conhecia diferente a cada dia. Naquela tarde abafada ela era uma guerreira. Havia acabado de entrar no jardim após um longo dia matando leões. Não, leões não, ela dizia que gostava dos animais. Matava baratas, gigantes, do tamanho de um gato que tem o tamanho de um cachorro. Certamente espreitava por entre os esgotos esperando o momento oportuno de dar o bote e então bam! A cabeça e a barata eram dois. Mas não tome minhas ligeiras palavras por uma ligeira ação. Sua tarefa foi mais difícil do que faço parecer, afinal, ela era para mim uma guerreira naquele dia, pois, toda sua ação exprime-se premeditada através de mim. Através de minhas palavras, seu dia era fácil, era contornável, a via assim, destemida e tudo que tocava dobrava-se a sua vontade. Mas o que eu conto são fadas. A verdade que ela carregava ao entrar no jardim era o cansaço de quem havia sido a própria barata, e não a guerreira.
Ela me vê ali no jardim. Aproxima-se, aproxima seu rosto de mim e confessa baixinho “queria ser uma flor” quando eu lhe respondo “você já é, a mais vistosa de todo este jardim” mas minhas palavras não a alcançam. Ela apenas me sente, me cheira, me ama, perfuma-se com meu amor e perfuma-me com suas lágrimas de guerreira, e eu desabrocho um pouquinho mais colhendo sua tristeza.
Naquela tarde chuvosa ela era uma princesa. Havia acabado de entrar no jardim após um longo dia encantando príncipes, que a adornavam com coroas floridas e colares colhidos, mas ela dizia que já tinha sua flor, não queria outras. Então eles lhe traziam cabeças de touros ainda quentes, mas ela repetia que amava os animais, menos as baratas gigantes, e então era isto o que eles lhe traziam, gigantes, amassadas, mas ela dizia “quando fui guerreira, já matei estes bichos”, e então eles não lhe traziam mais nada. Nem mais voltavam. Não mais a adornavam, não mais a queriam. E então ela voltava ao jardim, só, aproximava seu rosto de mim nesta tarde chuvosa e dizia baixinho “queria ser uma flor” e eu repetia “você já é, a mais vistosa deste jardim” mas minhas palavras não a alcançam, apenas meu cheiro a penetra e lhe diz “tu é amor”, e ela sente, chora um pouquinho mais, e eu desabrocho um pouquinho mais, colho sua solidão e a planto entre minhas pétalas, segura, assim como ela, só.
Mas este pólen é também alimento, é vida. Cuido de minha princesa, da minha guerreira, mas cuido também de outros, que chegam dos céus, ligeiros, e beijam-me apaixonadamente, me amam, nutro-os mas nutrem-me ainda mais. E em uma tarde ensolarada, ao beijar-me, ele, que vem dos céus, chora. Percebo então que ele acabara de alimentar-se da solidão que plantei entre minhas pétalas, e ele entristece-se, chora, perturba-se e então me diz que não pode mais me ver. Voa em busca de outras e não mais o vejo.
Outros vêm e também se vão. Logo, fico só.
Naquela tarde acinzentada ela era uma rainha. Havia acabado de entrar no jardim após um longo dia ordenando, sacrificando sua maciez em prol de resultados, deixando que seus súditos apenas a vissem assim, crua, não cruel, apenas crua, sem os prazeres que eles tinham em vida. E isso a entristece, mostrar-se assim, sem si, por isso aproxima seu rosto de mim e deixa suas lágrimas caírem dizendo “queria ser uma flor” quando lhe digo “você já é, a mais vistosa deste jardim”, mas minhas palavras não a alcançam. O que a penetra é meu perfume, mas neste dia é mudo, é transparente, é, assim como suas lágrimas, solitário. A solidão que plantou em mim transformou-se na ausência de minha personalidade. Meu perfume não mais há, e então ela se vai também. No dia seguinte, não volta. E depois, também.
Por muito tempo, ela não veio. Não carregava mais meu perfume, meus odores e frescores, agora ausentes. Quisera eu, com minhas vontades de natureza, que a natureza dela modificasse-se. Podia ser ela para mim uma flor como eu, mas esta chora, esta enruga-se, as pétalas desta caem no chão a cada sol poente, e não posso colhê-las, colho apenas sua agonia, que agora me preenche e exalo de mim. Este odor ela sente, sem precisar entrar no jardim. Percebe que sua flor está carregada de pesares, emanando esta aflição corrosiva, fruto de sua própria solidão que despejou sobre ela, sobre mim.
Estou assim, aguardando, enfim.
Por fim, ela vem. Hoje ela é uma feiticeira, vejo nos seus olhos, vejo os ingredientes dentro de si, quando vem, põe as finas mãos sobre mim e espalha magicamente a tristeza de minhas costas, de meu rosto, afasta para longe esta magia, a magia da solidão, que retira de mim como um véu que levanta-se para ver-se iluminar-se,
enquanto me conta todas as maldições que precisou desfazer, todas as magias que precisou reverter, como sofreu nas mãos de feiticeiros malévolos quando me diz que enfim percebeu que havia sido enfeitiçada pela magia da solidão, percebendo então o quanto sua natureza podia ser frágil, por isso diz, baixinho, apenas para eu ouvir “queria ser uma flor” e não me canso de dizer “você já é, a mais vistosa deste jardim” mas, como antes, minhas palavras não a alcançam, o que a preenche é a beleza de meu perfume restaurado, retomado, restabelecido, para exalar felicidade por mais um sol poente.
Neste sol poente, ela vem mais uma vez e vejo dali que hoje ela é uma flor. Acaba de entrar no jardim após um longo dia cortejando pássaros dos mais lindos que por ali passavam, cantava com eles, alimentava-os com toda sua alegria contida entre suas pétalas, e assim ela chega, aproxima seu rosto de mim e diz alto para todos escutarem “sou como você”, e eu repito no mesmo som “você sempre foi”, mas minhas palavras não a alcançam, o que a aquece é minha proximidade, quando enfim ela deita ao meu lado, por entre todas as flores do jardim e adormece rapidamente, quando eu vejo então as pequenas folhas, pequeninas, graciosas, verdes como meu caule, nascendo de suas pernas de guerreira, de princesa, de feiticeira e agora, de flor. Crescem a cada instante, percorrendo todas as curvas de suas pernas, de seu corpo, de seus braços mirrados de menina, que diminuem aos poucos, se tornando cada vez mais graciosos, mais ligeiros, mais sutis, ela é linda quando percebo-a pequena, seus pés entrelaçando-se aos chãos, ela então ergue-se ereta, magistralmente bela quando os pequenos botões abrem-se em longas pétalas resplandecendo-se sob o sol poente. E então ela se vira a mim e diz alegremente “sou flor” e eu lhe respondo “sempre fora”, e minhas palavras a alcançam, a preenchem, a renovam, e então, como antes, vimo-nos uma na outra, entrando neste ritual de ver-se, reconhecer-se, reapresentar-se. Não mais mata bichos gigantes, não mais corteja príncipes interesseiros, não mais deixa-se enfeitiçar. Está, enfim, flor.
E, por muito tempo, ela não se foi.

Uma estória começa tão logo outra termina

sexta-feira, outubro 05, 2012 § 0

Uma estória começa tão logo outra termina. É assim, no fim, que ele se cria.
Seus amigos estavam aqui há um bom tempo já, e compartilhavam seus energias alimentando a essência um do outro. Sentiam-se, respiravam-se, tornavam-se um. Posso afirmar que ele é seus amigos; seus amigos são o Jacques. Quando nutre estes personagens, o tempo torna-se outro: torna-se paciência, tranquilidade, torna-se um próprio personagem que hesita em se ausentar, quer apenas amaciá-los, sem hora. Sua palavra é agora, e nada além. Mas a paz do tempo é solitária, é desconhecida, e atacada, injustamente. O tempo é inimigo, é adversário, as pessoas jogam no time que chegará antes, correm sem saber contra o que, mas correm, não podem se atrasar, e por isso abdicam, precocemente, dos prazeres que o tempo nos fornece. Então eles se levantam.
“Mas está cedo ainda” Jacques deixa escorrer pelos lábios secos ao fim de uma longa conversa.
“Já é meia-noite, vou acordar as seis.” Joaquim insiste. De fato não era cedo, mas Jacques sentia o tempo como ele era: seu aliado. Sabia que não os veria tão logo, por isso seu tempo dizia que deveria extrair ao máximo esse momento. Com seus amigos, seu sol ainda estava a se pôr.
“Vocês podem dormir aqui.” Jacques dizia contra minha vontade, mas não digo nada.
“Não, preciso realmente trocar de roupas, descansar, amanhã começa tudo de novo.” Courtney, pelo que sempre percebi, é do tipo metódica. Nunca se estendia, e nunca chegava antes do previsto. Havia chegado as oito e meia, como avisara, antes de Joaquim e Julie, ajudou-o com o jantar, que estava com um cheiro incrível apesar de eu não ter comido, petiscou alguns queijos enquanto se esquentava com uma taça do vinho que Jacques havia ganho e abria hoje para seus amigos, antecipando uma noite sem fim. Mas tinha fim, e eles já seguravam seus casacos e suas bolsas enquanto Jacques não perde as esperanças.
“Vamos tentar marcar algo essa semana.”
“Sim, talvez no domingo.” Julie completa, sem tirar-lhe todas as esperanças.
O tempo é aquilo que se enxerga, seja um veloz cavalo, seja um senhor rico de histórias, e para seus amigos, estas histórias haviam chegado ao fim, pelo menos por hoje, pelo menos por ora, o que mais houvesse em Jacques para se contar deveria ficar para depois, e assim eles deixam o tempo carrega-los para longe de seu amigo. Transmitem seu amor através da despedida e concluem o capítulo desse encontro ao fecharem a porta atrás de si nos deixando a sós, mas sabemos já que uma estória começa tão logo outra termina. É assim, no fim, que Jacques se cria. E ele começa assim, com um cigarro.
Não sou muito espaçosa, mas faço questão, assim como Jacques, desta mesa no canto da sala. Não tem mais que quatro lugares, mas a verdade é que só precisava de um: esta cadeira encostada a parede onde ele acostumou-se a sentar para criar seus desenhos, seus personagens, mesmo que sem uma ergonomia adequada, mas ela é amada, e é nela agora que ele se senta, puxa para perto seu cinzeiro, e acende seu cigarro. Não digo nada, pelo menos por um tempo. Sei que ele já estava saturado de mim, e qualquer coisa que eu dissesse só pioraria a situação. Trocamos por um tempo este silêncio, esta trégua, um reconhecimento um do outro.
A fumaça entra nele queimando suas dúvidas e medos, mas seu anseio é fênix, das cinzas que bate no cinzeiro suas dúvidas ressurgem e ele as traga mais uma vez para ver-se existir na fumaça que expira, para saber que está ali de fato, um tato que aquece o corpo, e nutre sua alma. Sua calma é rasa, e dissipa-se tão logo estremece, o que nos remete a dor que sente ao ter o fogo alcançando-lhe os dedos. Fuma até só filtro houver, e reconhece-se assim, na carne queimando, vendo-se assim, vivo, mesmo que doa.
Apaga o filtro e busca-se nos últimos traços de fumaça tentando identificar-se nos desenhos que flutuam no ar, possíveis respostas codificadas, possíveis códigos respondidos, pedindo que os ventos leiam suas mãos e digam quem é Jacques senão aquela pergunta pairando no ar. E seu desconhecimento me consome, sua cegueira corrói meus próprios olhos, me enfraquecendo pois eu sei, sei quem ele é, por isso não temo em lhe responder.
"Você é um inútil, Jacques."
O tempo toma formas distintas para cada um, e o meu é este, concreto, fixado, reluzente. O de Jacques conjura-se nisto: na pergunta.
"Mas já?"
"Já não. Ainda. Você ainda é um inútil. Olha aquela louça na pia. A fumaça do seu cigarro não vai fazê-la desparecer, mesmo que você tente com tanto esforço."
"Eu já vou lavá-la."
"Já não. Ainda. Você ainda vai lavá-la, vamos, levante essa bunda frouxa daí e vá retomar sua vida."
A provocação é o movimento do seu corpo, que reage, e se levanta em direção a pia. Não posso deixar de reconhecer, ele é ao menos organizado, pelo menos na hora de lavar a louça. Põe a água para esquentar enquanto separa os talheres, as louças, as gorduras, o nojo. Ao seu passo, inicia a arte da regeneração.
"Não precisava que eu tivesse de te dizer. É sua obrigação, Jacques. Imagine, se alguém entra e vê isso tudo assim. O que vão pensar de mim? Que sou suja, desleixada, ou pior, velha, feia? Você gostaria que pensassem isso de você?"
"Ninguém precisa dizer. Você é velha e suja. Não consegue se limpar, então sobra para mim, e olha que sempre tento, mas você quase nunca deixa. Prefere ficar gemendo que está doendo."
"Só porque você é um bruto."
Quando dizia isso, não pensava em mim. Pensava nas mulheres que ele já trouxera para cá, e nas feições de terror e dor que elas transbordavam na cama, quando ele achava se tratarem de prazer e júbilo, pobre dele, bruto na limpeza, bruto na cama. E lento, muito lento, na cama e na limpeza, que só agora terminava para então voltar até seu amante: o cigarro.
"Vai morrer." Não me calo, não me calo.
"Não pragueje. Se isso acontecer, você estará sozinha. E fedida."
"Já estou fedida agora, era melhor estar sem você."
"Se eu morrer, você morre também."
Jacques não media a distância das palavras, por isso não alcançava a realidade do que dizia. Mas eu me mantenho calma, sei que estou segura, e é esse conforto que ele busca ao sentar-se ao sofá, esticar as pernas, e ligar a televisão. Ou talvez o fizesse apenas para me confrontar, medir a minha distância, mas eu já sei como sou curta.
Ele muda de canais escolhendo algo, mesmo ignorando já ter escolhido antes mesmo de se sentar. Deixa nos desenhos, como de costume, tão óbvio e decepcionante, tentando alimentar sua criatividade, e por fim, acaba alimentando apenas a mim.
"De nada adianta assistir e reassistir isso. Nós dois sabemos que o que você produz é um lixo. Um lixo para criancinhas, pior ainda, vai infectar gente inocente incapaz de se defender de tamanhos insultos que são esses desenhos seus."
Minhas palavras são papel, costumam ser amassadas, mas quando pegas de mal jeito, cortam, e ele sangra, me vê por todos os ângulos dos olhos, sentindo raiva, sabe que estou dizendo isso apenas para feri-lo, mas não resisto a possibilidade de vê-lo sangrar. Esta é uma ferida aberta, essas palavras têm importância para ele, ele sabe a distância dessa dor, e eu coloco meu dedo, quero senti-lo palpitando, vivendo, quero vê-lo no limiar do sentimento, escorrendo essa tristeza, e vejo-a escorrer pelos olhos marejados, avermelhados de ódio contra mim, mas eu o amo, ele ignora mas o amo, quero saber que ele está vivo mesmo que doa, que ele está aqui, está comigo, e não tem outro aonde ir. Sou eu quem o acolhe, o esquenta, mesmo que com fogo, mas o esquento, sou seu abrigo, quem o cozinha para servi-lo a vida lá fora, um terreno pior que o meu. Mas o sentimento é massa flexível, toma formas de acordo com meu tato. Minhas palavras definem a cor de seu interior, que transforma-se conforme meu desejo. Sou eu quem o conhece, sou sua referência, sou eu quem vê seus trabalhos dia e noite atirados sobre a mesa, só tem a mim para confiar, por isso dói, minha verdade o caleja severamente, o tira de seu chão, de seu caminho, perde-se no ar demasiado rarefeito para sequer conseguir respirar, e assim afoba-se, acelera-se, se engasga com seu próprio medo, temendo minha opinião, a representação de si, mas ele não enxerga que o faço apenas para o bem.
"Você é imunda! Por que faz isso comigo?"
"Porque o sujo aqui é você. Você só não consegue enxergar. É isso que estou tentando fazer. Te mostrar que, no fundo, você não serve para nada."
"Você é minha! Eu te criei, você é minha! Você tem de me fazer me sentir bem! É pra isso que você serve. Você me serve. O que tem de errado com você!?"
"Para saber isso, você tem que se perguntar o mesmo. O que há de errado com você, Jacques?"
De todas as dúvidas que pairam sobre sua cabeça a todo instante, essa pergunta não emitia uma delas. Não havia dúvida aqui. Ele sabe muito bem a resposta para essa pergunta, por isso se cala, desliga a televisão e se vai em direção ao quarto, quando o telefone toca. 
"Alô? Oi Francisca. Hoje? Não sei, acho melhor não. Estou sozinho sim. Não, acho melhor deixar pra outra hora. Depois eu te ligo. Tudo bem, beijo, tchau."
Ele me ignora, me trata como invisível, como se nem sequer existisse. Mas sou o bem mais valioso de sua vida, ele vive dentro de mim, sou sua mãe quando não existe outra a qual amar. Como pode me ignorar? Me vê, fala comigo, mas não me cumprimenta, não se despede, nem me faz carinhos, e poucas vezes me traz alguma surpresa. Romântico como é, suas surpresas não ultrapassam uma torneira nova, uma fiação trocada, afinal, ninguém quer que eu morra queimada, esse crédito devo dar a ele. Mas não posso ser injusta. Recusou Francisca, imagine, para ficar comigo. Passará a noite comigo mais uma vez, e nada me alegra mais. 
Pousa o telefone de volta no gancho e me olha daquele jeito conhecido: com tristeza. No fundo, sei que nada o entristece mais do que estar comigo a sós. Em poucos instantes, ele teve de decidir entre ouvir Francisca e as multidões da cidade ou ouvir a mim, e de todos os males, o conhecido é o menor.
Entra no quarto, obviamente eu já estou lá. 
"Tão fraco que não consegue sequer sair."
"Eu já estou cansado. Por favor, me deixe em paz."
"Eu sou sua paz. Venha dormir em mim."
"Você apenas me diria quão impotente eu sou. Já conheço esse roteiro."
"Você é o diretor e roteirista. Eu apenas executo as falas."
 "Sim. E acho que eu preciso começar a te calar."
Sem que eu possa me defender, ele avança sobre mim. Toma impulso e se volta com um chute mais forte que suas pernas poderiam aguentar. Se machuca, mas não desiste. Me dá um soco, e sua mão sangra. Eu permaneço em pé. Ele corre até sua caixa de ferramentas, e tira de lá um martelo. Corre até o banheiro, e começa a destruir meus azuleijos florais, meus preferidos, mas me mantenho calma.
"Isso não vai me ferir, você sabe."
"Mas eu posso tentar."
Pedaços começam a cair estilhaçando-se com os movimentos brutos como ele é. Ele é baixo, é vil, e ignorante. 
"Minha força não está nesse concreto." Eu tento ilumina-lo, em vão.
"Eu faço isso pra te mostrar como eu te quero: desfeita. Desapareça!" E continua a martelar os azulejos, agora a pia do banheiro que vai ao chão, a banheira, tão querida. Mas ele não compreende que isso não me afeta, e insisto.
"Você não vai me calar. Você só está se ridicularizando, e você sente, sente crescer em você a vergonha, vergonha de si, de seus atos, de sua consciência, de seu pensamento. Tenta fugir de mim, mas não pode fugir de você mesmo. Sabe como essa situação é ridícula, e por isso insiste. Porque não tem mais o que fazer. Não tem poder sobre mim, e não tem mais o que fazer senão me ouvir."
De alguma forma, crio uma reação nele, por mais que inusitada.
Ele para.
Carregado de suor e raiva, ele toma fôlego por alguns instantes. Olha de fora a fora, pensando em cada parte poderia destruir, mas resigna-se. Ou pelo menos é o que eu achava.
Volta-se a cozinha e abre a porta da geladeira. Estica o braço e alcança sua garrafa de gim. Eu rio.
"Desistiu e agora vai embebedar-se para ver seus problemas desaparecerem."
Estranhamente, ele responde.
"Exato."
Começa a tomar gole após gole sem intervalo, dose dupla após dose dupla, em shot após shot, e quando vi, havia desaparecido quase um litro da bebida. Confesso não ter entendido, mas ele nunca quis que eu compreendesse. O que ele quis, em breve eu compreendi.
Foi até seu quarto e pegou todas as cartelas de seu remédio. Me lembrei rapidamente das diminutas palavras na bula proibindo sua ingestão com bebidas alcoólicas, e então ele ingere uma após outra até nada mais restar, nem outros remédios, nem outros venenos, nada, e eu não faço nada. Afinal, o que poderia eu fazer? Eu sou apenas uma casa.
Enfim ele se deita.
Continuo a dizer o quão fraco ele é, rasteiro, tento provocar alguma reação mas em instantes ele nem sequer me ouve. Cai num sono leve, e logo começa a sibilar alguns sons enquanto dorme. Começa a sonhar.
Seus amigos o chamaram para uma apresentação musical. É um local pequeno, pouco iluminado, a não ser pelo palco onde se encontra um de seus conhecidos ostentando uma guitarra. Francisca está ao lado, também sobre o palco. Eram todos conhecidos.
Jacques entra e acena para eles, que riem. Ele não entende, vai se aproximando deles, e eles riem cada vez mais alto, quando Jacques começa a tetear a si mesmo para se reconhecer, saber o que poderia haver em si de tamanha estranheza, quando suas mãos alcançam a altura de seu peito, e ao invés de sentir seu próprio corpo, sente algo fofo. Percebe então estar vestindo um colete salva-vidas, e então continua a tocar-se buscando algo adverso. Fazia todo o sentido estar utilizando um colete salva-vidas, se sentia seguro, estava preparado, embora não soubesse com certeza para o que.
Seus amigos começam a tocar músicas improvisadas sobre Jacques, "o patinho". Ele entristece-se, não entende o motivo de tamanha gozação, afinal, deveriam estes serem seus amigos. Percebe então que ninguém compartilha de seu mesmo pensamento, de sua forma de viver, percebe estar só em suas ideias, então, não havia outro caminho. Se volta para a saída e se vai, vestindo seu colete, em busca de si mesmo, e conforme anda por esse caminho, tudo vai se escurecendo, escurecendo, até não haver nada mais além de um silêncio.
Jacques não mais sibila, não mais respira. Enfim, conquista seu desejo, de silenciar-se. Cala-se, e com isso, cala-me pois, de fato, minha voz estava apenas em sua mente. Mas a tranquilidade é iminente, afinal, sabemos já que uma estória começa tão logo outra termina.
É assim, no fim, que ele se cria.

Um olhar

sábado, setembro 29, 2012 § 1

Dois quilos, ela disse.
Ele pensou nos olhos dela quando selecionou a peça mais atraente e menos gordurosa, ela era magra, e tão agradável de se ver, poderia picar seus dois quilos de carne para sempre para segurar sua presença um pouquinho mais próxima da dele, mas ela não era para ele. Deveria ter um marido para o qual se preparava para cozinhar, e talvez dois filhos, era nova, mas eram dois quilos, queria que tivesse-lhe pedido meio, apenas meio, cozinharia um pouco para si, solitária, deixaria um pouco para o dia seguinte, solitária, por que não meio? Poderia dizer algo engraçado e trocar um sorriso sequer, mesmo que fosse meio quilo de sorrisos, se contentaria com pouco, mesmo que pouco fosse muito para ele. Mas não, pesava o saco na balança e o que a balança esfregava em sua cara eram dois quilos e oitenta e dois gramas de pura tristeza, ela iria embora e cozinharia para outro que não ele, não podia fazer mais nada. A etiqueta que colocava agora era o seu adeus silencioso, e o que mais o torturava era saber que ela nunca saberia de seu amor, mesmo que fosse rápido, ligeiro, só meio quilo de amor, desperdiçado e abandonado. Talvez se tivesse lhe confessado, esta estória seria outra. Ao pensar em seus olhos, ele poderia ter enxergado a verdade dela. Saberia quantos filhos, maridos, amantes ela tem apenas pelos seus olhos, mas tudo que ele conseguiu enxergar foi sua própria estória com ela e o que sabemos agora é que essa estória não poderia acontecer, pois ela se foi para o caixa, com seus olhos, suas verdades e seus dois quilos de mistério.
A fila não era grande, mas o tempo passa diferente para cada um, e para ele o tempo corria, a perderia de vista, perderia seus olhos, e só o que seu corpo conseguiu fazer foi abandonar sua faca sobre a tábua, dar a volta no balcão e ir atrás dela.
Ela já está com sua sacola em mãos e se vai, e o que seus olhos não lhe disseram era que ele vinha logo atrás, as manchas vermelhas gritando por atenção sobre o uniforme branco, suas botas fazendo um barulho maior do que sua intenção, mas ela não o nota, o carrega até sua casa, e ela entra, solitária.
Ele aguarda do lado de fora, não conseguiria enfrentar os olhos dela, dizer que a amava desde já, e se sua família chegasse?
Se sentou em uma mureta e com seus olhos sobre a casa aguardou o início de uma estória alheia, um protagonista que não ele para abraça-la e não mais solta-la, filhos para beijar e lhe preencher a vida, amigos para dividir os anseios, mas tudo o que o tempo mostrava era ele próprio sentado em uma mureta. Ninguém chega, ninguém se ama, ninguém se preenche além da noite com suas estrelas. Como ele poderia aceitar que aqueles olhos estivessem sozinhos? Sem alguém para se confessar, alguém para se refletir. Não poderia permitir.
Se levanta e vai em direção a porta, desarmado, desnudo, carregando apenas seu amor, mesmo que breve, mesmo que imprevisível, era seu, e era tudo que podia dar, tudo para ter de volta aquele olhar, deixar o penetrar, deixou a coragem o alcançar e bateu na porta uma vez apenas, sabia que ela o ouviria, e o ouviu, a porta abriu, mas não o viu.
Ele a vê, vê seu corpo, mas ela não abria os olhos.
Ela o recebe, o deixa entrar. Ele se senta, a chama pelo olhar, mas era inútil, ela mantinha os olhos fechados, e assim se senta a sua frente. Permite que ele se prepare, se encontre, para assim poder chegar, mas ele permanece em silêncio. Quer dizer a ela tantas coisas, tantos amores, entrega-la tantos quilos de paixão, mas ele não vê seus olhos, o protagonista de sua agonia. Ela os mantém em segredo, confinados, sabe de sua paixão, sabe que ele os ama, percebeu ao vê-lo anteriormente, e por isso os cala, cala seus olhos, silencia tudo que eles poderiam contar, congela todos que eles poderiam hipnotizar. Seus olhos em silêncio param o que o tempo poderia revelar. E ele se aflige, se perde, não encontra a origem de seu desejo, não encontra seu propósito, seu motivo. Ela está ali, mas ele se vê só, seus próprios olhos estão sozinhos, não se refletem, não se espelham, apenas permanecem, na rima do silêncio. Sem seu olhar, ele não pode mais amar, e ela sabe disso, o testa, o priva de suas joias, quer saber a distância de seu amor, se o mesmo a alcança ou se reserva-se a apenas seus olhos, e com o silêncio dele ela ganha, estava certa, está só, como tantas outras vezes, e para sempre será, mas isso ele não quer, ela não pode viver só, seus olhos não podem estar sozinhos. Mesmo que ele não a veja por completo, ele a quer bem, a quer quente, a quer macia, mesmo se ela não confia a ele a riqueza de seus olhos. Sente crescer em si o desejo do cuidado, do afeto, quer cuidar de seus olhos mesmo se eles se ocultam, mesmo se mantém-se em segredo, quer iluminá-la mesmo se ela reserva-se ao escuro, mas não tem como dizer isso a ela, seus próprios olhos estão falando sozinhos, ela não o vê, não vê os olhos deles contarem a ela o quanto a querem mesmo sem vê-la. Com seus olhos fechados, tudo que ela vê é silêncio, é vazio, é solitário, ela está novamente só, pois ele não diz, não se demonstra, não confessa que deseja apenas seus olhos, e ela não aguenta mais o esperar, já entendeu que ele não a quer, não é preciso mais se prolongar, e então decide dizer que se vá.
Abre seus olhos para vencer essa disputa, e está pronta para olhar nos olhos dele e mostrar que seus olhos são tudo o que ele quer, mas o que ela encontra é um beco sem saída. Ele está ali, mas com os olhos fechados.
Está disposto a viver sem vê-la para tê-la bem, tê-la quente, tê-la macia, não quer seus olhos, quer seu amor, mesmo que para isso precise viver no escuro, e ela o vê assim, amando-a mesmo no escuro, e assim se percebe equivocada. Não está mais sozinha.
Levanta-se e vai em direção a ele, e encosta seus finos dedos nos olhos dele, que abre aos pouquinhos, deixando-o iluminar-se. Ele a vê, ela o vê, finalmente podem-se refletir, preencher um ao outro. Ela perdeu a disputa, estava equivocava, mas ganhou uma riqueza maior. Ganhou os olhos dele.

Viagem as nuvens

sexta-feira, agosto 10, 2012 § 1

Queria buscar, trazer-me assim, sem fim, as reticências de mim prolongando-me em um eterno "sim", sem precisar me prestar a moldar meu pensamento, deixando meu sentimento ali, disforme, displicente, uma abstração desvalorizada daquilo que sou senão um desejo de ser, transcender-me a um alimento do meu mundo, suas cores nutrindo um desejo de viver, seus sabores agraciando um prazer de ser, de saber poder ter em si as faíscas do reviver, reconhecer ser o próprio condutor do vagão contendo minha vida, sendo transportada até o local ideal para abrir-se em luz, iluminando aquele que sou e aguardo ser, podendo assim crescer recolhendo e reunindo os fragmentos de mim, me tornando enfim eu, talhado em desejos e fixado em pensamentos, deixando que meus sentimentos espalhem-se pelo chão por onde flutuo, impulsionando-me a subir cada vez mais as nuvens que descrevo e desejo que sejam aquela casa formada para abrigar-nos exatamente como somos, seja como for, sem pensar sobre o que nos falta, pois isso não procede.
Somos nós mesmos tudo aquilo que precisamos ter.

Libertação

domingo, agosto 05, 2012 § 0

O vento passeia as páginas, que dançam embaralhando meus sentimentos, me fazendo correr atrás de minhas cores para descobrir onde estou senão em vários lugares, despido da carne que me envolve, humilde ao mostrar-me cru, abstendo-me dos temperos da ingratidão.
Quero-me assim, livre para sentir, esculpindo meus sentidos em torres de imaginação, perdendo-me pelas florestas do meu coração, carregando em minhas costas apenas a moeda da ignorância pronto para troca-la pelo conhecimento, que me entregam a preço de banana, ocupados demais comercializando toda a materialidade pesada demais para que possamos sequer carregar conosco para onde formos e, acredite, nós vamos embora uma hora e, então, aquele encoberto de bens estará nu, e o nu se verá coberto dos bens da alma, que cuido com carinho levando-a a escola da vida para aprender o que eu posso fazer para que eu possa ser, sem me apressar ou escorregar pela tempestade do caminho.
Vivo da liberdade do pensamento, que planto em meus atos para ver-se aflorar em libertação, ciente de que o sentimento é aquilo que podemos dar, sem precisar esperar o gracejo do cumprimento, sendo nós mesmos a resposta para nossas perguntas.
A verdade é o chão onde pisamos, que pode-se abrir ao mais leve hesitar, tragando-nos para onde não queremos ir, tornando-nos aquilo que não queremos ser.
O que podemos fazer é trilhar, sem precisar enxergar, confiando na escuridão da verdade: de que nascemos para ser feliz, portanto, não precisamos nos preocupar em escolher. Só o que precisamos fazer é sentir.

O que serei

quinta-feira, agosto 02, 2012 § 0

Tô de boa
Quê; vou dizer?
Melhor guardar, deixar aflorar, para que eu possa desdobrar e, assim, poder amar
Vou embora
Vou buscar
Ser, para poder dizer
É mais fácil viver
Sem pensar
Quero abraçar
Retomar a ação ao desejo
Só saborear
Me lambuzar com o gosto de suas vontades
Abdicarei de suas verdades para me tornar seu sonho
Não temerei
Dormirei em você até acordar seu corpo
Não vou voltar atrás
Estarei à frente
Rente a liberdade
Que a saudade me exprima
E ilumina minha paixão
Vivendo da inação
Serei engolido pela inércia de minha razão
Preciso; não
Sou de antemão o desvio do meu destino
E afirmo com precisão
Vivo da ilusão
Se querer é não ter, prefiro não te ter para sempre te querer
Seduzindo-me com sua ausência
Me enlouquecendo pela abstinência
Deixando que a vivência me ensine
A não poder
A não sofrer
A não viver
A não ter
Para que eu possa ser
Você

Obséquio

quarta-feira, agosto 01, 2012 § 0

Tenho medo de falar sozinho; esquecerem-me à beira de um vazio. Contemplo a verdade da retórica, e a hora não sou eu, embora o agora seja ela. Se retorna, me contrai. Mas se vai, e não me acorda. Te quero e te espero, mas me guarda e só recorda. Respondo a pergunta de si, mas do mi se esqueceu e não tocou. Deixou meu silêncio me cantar, e aprendi a falar a língua do um, que não dissemina nem se multiplica, apenas reproduz a lição da solidão que me ensina e não me esquece, nem me deixa e me apetece. Cada parágrafo é o desejo de conhecer um novo um, mas não condiz, e o que se concretiza é a ausência da palavra trocada, uma confissão não raciocinada em que busco um reflexo no espelho da comunicação. Sucinto, revelo meus desejos e te aguardo num amparo. Deixo meu enfoque apenas pela esperança do seu toque.

Direito

terça-feira, julho 17, 2012 § 0

O direito é relativo. Não teme nem desdenha, mas julga e te condena.
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