Por muito tempo, ela não veio. Não carregava mais meu perfume, meus
odores e frescores.
Via-me nela, assim como por muito tempo ela se via em mim. Confesso que
estávamos conectadas a um ritual diário de ver-se, reconhecer-se,
reapresentar-se. A conhecia diferente a cada dia. Naquela tarde abafada ela era
uma guerreira. Havia acabado de entrar no jardim após um longo dia matando
leões. Não, leões não, ela dizia que gostava dos animais. Matava baratas,
gigantes, do tamanho de um gato que tem o tamanho de um cachorro. Certamente
espreitava por entre os esgotos esperando o momento oportuno de dar o bote e
então bam! A cabeça e a barata eram dois. Mas não tome minhas ligeiras palavras
por uma ligeira ação. Sua tarefa foi mais difícil do que faço parecer, afinal, ela
era para mim uma guerreira naquele dia, pois, toda sua ação exprime-se
premeditada através de mim. Através de minhas palavras, seu dia era fácil, era
contornável, a via assim, destemida e tudo que tocava dobrava-se a sua vontade.
Mas o que eu conto são fadas. A verdade que ela carregava ao entrar no jardim
era o cansaço de quem havia sido a própria barata, e não a guerreira.
Ela me vê ali no jardim. Aproxima-se, aproxima seu rosto de mim e
confessa baixinho “queria ser uma flor” quando eu lhe respondo “você já é, a
mais vistosa de todo este jardim” mas minhas palavras não a alcançam. Ela
apenas me sente, me cheira, me ama, perfuma-se com meu amor e perfuma-me com
suas lágrimas de guerreira, e eu desabrocho um pouquinho mais colhendo sua
tristeza.
Naquela tarde chuvosa ela era uma princesa. Havia acabado de entrar no
jardim após um longo dia encantando príncipes, que a adornavam com coroas
floridas e colares colhidos, mas ela dizia que já tinha sua flor, não queria
outras. Então eles lhe traziam cabeças de touros ainda quentes, mas ela repetia
que amava os animais, menos as baratas gigantes, e então era isto o que eles
lhe traziam, gigantes, amassadas, mas ela dizia “quando fui guerreira, já matei
estes bichos”, e então eles não lhe traziam mais nada. Nem mais voltavam. Não
mais a adornavam, não mais a queriam. E então ela voltava ao jardim, só,
aproximava seu rosto de mim nesta tarde chuvosa e dizia baixinho “queria ser
uma flor” e eu repetia “você já é, a mais vistosa deste jardim” mas minhas
palavras não a alcançam, apenas meu cheiro a penetra e lhe diz “tu é amor”, e
ela sente, chora um pouquinho mais, e eu desabrocho um pouquinho mais, colho
sua solidão e a planto entre minhas pétalas, segura, assim como ela, só.
Mas este pólen é também alimento, é vida. Cuido de minha princesa, da
minha guerreira, mas cuido também de outros, que chegam dos céus, ligeiros, e
beijam-me apaixonadamente, me amam, nutro-os mas nutrem-me ainda mais. E em uma
tarde ensolarada, ao beijar-me, ele, que vem dos céus, chora. Percebo então que
ele acabara de alimentar-se da solidão que plantei entre minhas pétalas, e ele
entristece-se, chora, perturba-se e então me diz que não pode mais me ver. Voa
em busca de outras e não mais o vejo.
Outros vêm e também se vão. Logo, fico só.
Naquela tarde acinzentada ela era uma rainha. Havia acabado de entrar no
jardim após um longo dia ordenando, sacrificando sua maciez em prol de
resultados, deixando que seus súditos apenas a vissem assim, crua, não cruel,
apenas crua, sem os prazeres que eles tinham em vida. E isso a entristece,
mostrar-se assim, sem si, por isso aproxima seu rosto de mim e deixa suas
lágrimas caírem dizendo “queria ser uma flor” quando lhe digo “você já é, a
mais vistosa deste jardim”, mas minhas palavras não a alcançam. O que a penetra
é meu perfume, mas neste dia é mudo, é transparente, é, assim como suas
lágrimas, solitário. A solidão que plantou em mim transformou-se na ausência de
minha personalidade. Meu perfume não mais há, e então ela se vai também. No dia
seguinte, não volta. E depois, também.
Por muito tempo, ela não veio. Não carregava mais meu perfume, meus
odores e frescores, agora ausentes. Quisera eu, com minhas vontades de
natureza, que a natureza dela modificasse-se. Podia ser ela para mim uma flor
como eu, mas esta chora, esta enruga-se, as pétalas desta caem no chão a cada
sol poente, e não posso colhê-las, colho apenas sua agonia, que agora me
preenche e exalo de mim. Este odor ela sente, sem precisar entrar no jardim.
Percebe que sua flor está carregada de pesares, emanando esta aflição
corrosiva, fruto de sua própria solidão que despejou sobre ela, sobre mim.
Estou assim, aguardando, enfim.
Por fim, ela vem. Hoje ela é uma feiticeira, vejo nos seus olhos, vejo
os ingredientes dentro de si, quando vem, põe as finas mãos sobre mim e espalha
magicamente a tristeza de minhas costas, de meu rosto, afasta para longe esta magia,
a magia da solidão, que retira de mim como um véu que levanta-se para ver-se
iluminar-se,
enquanto me conta todas as maldições que precisou desfazer, todas as
magias que precisou reverter, como sofreu nas mãos de feiticeiros malévolos
quando me diz que enfim percebeu que havia sido enfeitiçada pela magia da
solidão, percebendo então o quanto sua natureza podia ser frágil, por isso diz,
baixinho, apenas para eu ouvir “queria ser uma flor” e não me canso de dizer
“você já é, a mais vistosa deste jardim” mas, como antes, minhas palavras não a
alcançam, o que a preenche é a beleza de meu perfume restaurado, retomado,
restabelecido, para exalar felicidade por mais um sol poente.
Neste sol poente, ela vem mais uma vez e vejo dali que hoje ela é uma
flor. Acaba de entrar no jardim após um longo dia cortejando pássaros dos mais
lindos que por ali passavam, cantava com eles, alimentava-os com toda sua alegria
contida entre suas pétalas, e assim ela chega, aproxima seu rosto de mim e diz
alto para todos escutarem “sou como você”, e eu repito no mesmo som “você
sempre foi”, mas minhas palavras não a alcançam, o que a aquece é minha
proximidade, quando enfim ela deita ao meu lado, por entre todas as flores do
jardim e adormece rapidamente, quando eu vejo então as pequenas folhas,
pequeninas, graciosas, verdes como meu caule, nascendo de suas pernas de
guerreira, de princesa, de feiticeira e agora, de flor. Crescem a cada
instante, percorrendo todas as curvas de suas pernas, de seu corpo, de seus
braços mirrados de menina, que diminuem aos poucos, se tornando cada vez mais
graciosos, mais ligeiros, mais sutis, ela é linda quando percebo-a pequena,
seus pés entrelaçando-se aos chãos, ela então ergue-se ereta, magistralmente
bela quando os pequenos botões abrem-se em longas pétalas resplandecendo-se sob
o sol poente. E então ela se vira a mim e diz alegremente “sou flor” e eu lhe
respondo “sempre fora”, e minhas palavras a alcançam, a preenchem, a renovam, e
então, como antes, vimo-nos uma na outra, entrando neste ritual de ver-se,
reconhecer-se, reapresentar-se. Não mais mata bichos gigantes, não mais corteja
príncipes interesseiros, não mais deixa-se enfeitiçar. Está, enfim, flor.
E, por muito tempo, ela não se foi.