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De Pétalas e Pólen

terça-feira, novembro 20, 2012 § 0


Por muito tempo, ela não veio. Não carregava mais meu perfume, meus odores e frescores.
Via-me nela, assim como por muito tempo ela se via em mim. Confesso que estávamos conectadas a um ritual diário de ver-se, reconhecer-se, reapresentar-se. A conhecia diferente a cada dia. Naquela tarde abafada ela era uma guerreira. Havia acabado de entrar no jardim após um longo dia matando leões. Não, leões não, ela dizia que gostava dos animais. Matava baratas, gigantes, do tamanho de um gato que tem o tamanho de um cachorro. Certamente espreitava por entre os esgotos esperando o momento oportuno de dar o bote e então bam! A cabeça e a barata eram dois. Mas não tome minhas ligeiras palavras por uma ligeira ação. Sua tarefa foi mais difícil do que faço parecer, afinal, ela era para mim uma guerreira naquele dia, pois, toda sua ação exprime-se premeditada através de mim. Através de minhas palavras, seu dia era fácil, era contornável, a via assim, destemida e tudo que tocava dobrava-se a sua vontade. Mas o que eu conto são fadas. A verdade que ela carregava ao entrar no jardim era o cansaço de quem havia sido a própria barata, e não a guerreira.
Ela me vê ali no jardim. Aproxima-se, aproxima seu rosto de mim e confessa baixinho “queria ser uma flor” quando eu lhe respondo “você já é, a mais vistosa de todo este jardim” mas minhas palavras não a alcançam. Ela apenas me sente, me cheira, me ama, perfuma-se com meu amor e perfuma-me com suas lágrimas de guerreira, e eu desabrocho um pouquinho mais colhendo sua tristeza.
Naquela tarde chuvosa ela era uma princesa. Havia acabado de entrar no jardim após um longo dia encantando príncipes, que a adornavam com coroas floridas e colares colhidos, mas ela dizia que já tinha sua flor, não queria outras. Então eles lhe traziam cabeças de touros ainda quentes, mas ela repetia que amava os animais, menos as baratas gigantes, e então era isto o que eles lhe traziam, gigantes, amassadas, mas ela dizia “quando fui guerreira, já matei estes bichos”, e então eles não lhe traziam mais nada. Nem mais voltavam. Não mais a adornavam, não mais a queriam. E então ela voltava ao jardim, só, aproximava seu rosto de mim nesta tarde chuvosa e dizia baixinho “queria ser uma flor” e eu repetia “você já é, a mais vistosa deste jardim” mas minhas palavras não a alcançam, apenas meu cheiro a penetra e lhe diz “tu é amor”, e ela sente, chora um pouquinho mais, e eu desabrocho um pouquinho mais, colho sua solidão e a planto entre minhas pétalas, segura, assim como ela, só.
Mas este pólen é também alimento, é vida. Cuido de minha princesa, da minha guerreira, mas cuido também de outros, que chegam dos céus, ligeiros, e beijam-me apaixonadamente, me amam, nutro-os mas nutrem-me ainda mais. E em uma tarde ensolarada, ao beijar-me, ele, que vem dos céus, chora. Percebo então que ele acabara de alimentar-se da solidão que plantei entre minhas pétalas, e ele entristece-se, chora, perturba-se e então me diz que não pode mais me ver. Voa em busca de outras e não mais o vejo.
Outros vêm e também se vão. Logo, fico só.
Naquela tarde acinzentada ela era uma rainha. Havia acabado de entrar no jardim após um longo dia ordenando, sacrificando sua maciez em prol de resultados, deixando que seus súditos apenas a vissem assim, crua, não cruel, apenas crua, sem os prazeres que eles tinham em vida. E isso a entristece, mostrar-se assim, sem si, por isso aproxima seu rosto de mim e deixa suas lágrimas caírem dizendo “queria ser uma flor” quando lhe digo “você já é, a mais vistosa deste jardim”, mas minhas palavras não a alcançam. O que a penetra é meu perfume, mas neste dia é mudo, é transparente, é, assim como suas lágrimas, solitário. A solidão que plantou em mim transformou-se na ausência de minha personalidade. Meu perfume não mais há, e então ela se vai também. No dia seguinte, não volta. E depois, também.
Por muito tempo, ela não veio. Não carregava mais meu perfume, meus odores e frescores, agora ausentes. Quisera eu, com minhas vontades de natureza, que a natureza dela modificasse-se. Podia ser ela para mim uma flor como eu, mas esta chora, esta enruga-se, as pétalas desta caem no chão a cada sol poente, e não posso colhê-las, colho apenas sua agonia, que agora me preenche e exalo de mim. Este odor ela sente, sem precisar entrar no jardim. Percebe que sua flor está carregada de pesares, emanando esta aflição corrosiva, fruto de sua própria solidão que despejou sobre ela, sobre mim.
Estou assim, aguardando, enfim.
Por fim, ela vem. Hoje ela é uma feiticeira, vejo nos seus olhos, vejo os ingredientes dentro de si, quando vem, põe as finas mãos sobre mim e espalha magicamente a tristeza de minhas costas, de meu rosto, afasta para longe esta magia, a magia da solidão, que retira de mim como um véu que levanta-se para ver-se iluminar-se,
enquanto me conta todas as maldições que precisou desfazer, todas as magias que precisou reverter, como sofreu nas mãos de feiticeiros malévolos quando me diz que enfim percebeu que havia sido enfeitiçada pela magia da solidão, percebendo então o quanto sua natureza podia ser frágil, por isso diz, baixinho, apenas para eu ouvir “queria ser uma flor” e não me canso de dizer “você já é, a mais vistosa deste jardim” mas, como antes, minhas palavras não a alcançam, o que a preenche é a beleza de meu perfume restaurado, retomado, restabelecido, para exalar felicidade por mais um sol poente.
Neste sol poente, ela vem mais uma vez e vejo dali que hoje ela é uma flor. Acaba de entrar no jardim após um longo dia cortejando pássaros dos mais lindos que por ali passavam, cantava com eles, alimentava-os com toda sua alegria contida entre suas pétalas, e assim ela chega, aproxima seu rosto de mim e diz alto para todos escutarem “sou como você”, e eu repito no mesmo som “você sempre foi”, mas minhas palavras não a alcançam, o que a aquece é minha proximidade, quando enfim ela deita ao meu lado, por entre todas as flores do jardim e adormece rapidamente, quando eu vejo então as pequenas folhas, pequeninas, graciosas, verdes como meu caule, nascendo de suas pernas de guerreira, de princesa, de feiticeira e agora, de flor. Crescem a cada instante, percorrendo todas as curvas de suas pernas, de seu corpo, de seus braços mirrados de menina, que diminuem aos poucos, se tornando cada vez mais graciosos, mais ligeiros, mais sutis, ela é linda quando percebo-a pequena, seus pés entrelaçando-se aos chãos, ela então ergue-se ereta, magistralmente bela quando os pequenos botões abrem-se em longas pétalas resplandecendo-se sob o sol poente. E então ela se vira a mim e diz alegremente “sou flor” e eu lhe respondo “sempre fora”, e minhas palavras a alcançam, a preenchem, a renovam, e então, como antes, vimo-nos uma na outra, entrando neste ritual de ver-se, reconhecer-se, reapresentar-se. Não mais mata bichos gigantes, não mais corteja príncipes interesseiros, não mais deixa-se enfeitiçar. Está, enfim, flor.
E, por muito tempo, ela não se foi.
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