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Uma estória começa tão logo outra termina

sexta-feira, outubro 05, 2012 § 0

Uma estória começa tão logo outra termina. É assim, no fim, que ele se cria.
Seus amigos estavam aqui há um bom tempo já, e compartilhavam seus energias alimentando a essência um do outro. Sentiam-se, respiravam-se, tornavam-se um. Posso afirmar que ele é seus amigos; seus amigos são o Jacques. Quando nutre estes personagens, o tempo torna-se outro: torna-se paciência, tranquilidade, torna-se um próprio personagem que hesita em se ausentar, quer apenas amaciá-los, sem hora. Sua palavra é agora, e nada além. Mas a paz do tempo é solitária, é desconhecida, e atacada, injustamente. O tempo é inimigo, é adversário, as pessoas jogam no time que chegará antes, correm sem saber contra o que, mas correm, não podem se atrasar, e por isso abdicam, precocemente, dos prazeres que o tempo nos fornece. Então eles se levantam.
“Mas está cedo ainda” Jacques deixa escorrer pelos lábios secos ao fim de uma longa conversa.
“Já é meia-noite, vou acordar as seis.” Joaquim insiste. De fato não era cedo, mas Jacques sentia o tempo como ele era: seu aliado. Sabia que não os veria tão logo, por isso seu tempo dizia que deveria extrair ao máximo esse momento. Com seus amigos, seu sol ainda estava a se pôr.
“Vocês podem dormir aqui.” Jacques dizia contra minha vontade, mas não digo nada.
“Não, preciso realmente trocar de roupas, descansar, amanhã começa tudo de novo.” Courtney, pelo que sempre percebi, é do tipo metódica. Nunca se estendia, e nunca chegava antes do previsto. Havia chegado as oito e meia, como avisara, antes de Joaquim e Julie, ajudou-o com o jantar, que estava com um cheiro incrível apesar de eu não ter comido, petiscou alguns queijos enquanto se esquentava com uma taça do vinho que Jacques havia ganho e abria hoje para seus amigos, antecipando uma noite sem fim. Mas tinha fim, e eles já seguravam seus casacos e suas bolsas enquanto Jacques não perde as esperanças.
“Vamos tentar marcar algo essa semana.”
“Sim, talvez no domingo.” Julie completa, sem tirar-lhe todas as esperanças.
O tempo é aquilo que se enxerga, seja um veloz cavalo, seja um senhor rico de histórias, e para seus amigos, estas histórias haviam chegado ao fim, pelo menos por hoje, pelo menos por ora, o que mais houvesse em Jacques para se contar deveria ficar para depois, e assim eles deixam o tempo carrega-los para longe de seu amigo. Transmitem seu amor através da despedida e concluem o capítulo desse encontro ao fecharem a porta atrás de si nos deixando a sós, mas sabemos já que uma estória começa tão logo outra termina. É assim, no fim, que Jacques se cria. E ele começa assim, com um cigarro.
Não sou muito espaçosa, mas faço questão, assim como Jacques, desta mesa no canto da sala. Não tem mais que quatro lugares, mas a verdade é que só precisava de um: esta cadeira encostada a parede onde ele acostumou-se a sentar para criar seus desenhos, seus personagens, mesmo que sem uma ergonomia adequada, mas ela é amada, e é nela agora que ele se senta, puxa para perto seu cinzeiro, e acende seu cigarro. Não digo nada, pelo menos por um tempo. Sei que ele já estava saturado de mim, e qualquer coisa que eu dissesse só pioraria a situação. Trocamos por um tempo este silêncio, esta trégua, um reconhecimento um do outro.
A fumaça entra nele queimando suas dúvidas e medos, mas seu anseio é fênix, das cinzas que bate no cinzeiro suas dúvidas ressurgem e ele as traga mais uma vez para ver-se existir na fumaça que expira, para saber que está ali de fato, um tato que aquece o corpo, e nutre sua alma. Sua calma é rasa, e dissipa-se tão logo estremece, o que nos remete a dor que sente ao ter o fogo alcançando-lhe os dedos. Fuma até só filtro houver, e reconhece-se assim, na carne queimando, vendo-se assim, vivo, mesmo que doa.
Apaga o filtro e busca-se nos últimos traços de fumaça tentando identificar-se nos desenhos que flutuam no ar, possíveis respostas codificadas, possíveis códigos respondidos, pedindo que os ventos leiam suas mãos e digam quem é Jacques senão aquela pergunta pairando no ar. E seu desconhecimento me consome, sua cegueira corrói meus próprios olhos, me enfraquecendo pois eu sei, sei quem ele é, por isso não temo em lhe responder.
"Você é um inútil, Jacques."
O tempo toma formas distintas para cada um, e o meu é este, concreto, fixado, reluzente. O de Jacques conjura-se nisto: na pergunta.
"Mas já?"
"Já não. Ainda. Você ainda é um inútil. Olha aquela louça na pia. A fumaça do seu cigarro não vai fazê-la desparecer, mesmo que você tente com tanto esforço."
"Eu já vou lavá-la."
"Já não. Ainda. Você ainda vai lavá-la, vamos, levante essa bunda frouxa daí e vá retomar sua vida."
A provocação é o movimento do seu corpo, que reage, e se levanta em direção a pia. Não posso deixar de reconhecer, ele é ao menos organizado, pelo menos na hora de lavar a louça. Põe a água para esquentar enquanto separa os talheres, as louças, as gorduras, o nojo. Ao seu passo, inicia a arte da regeneração.
"Não precisava que eu tivesse de te dizer. É sua obrigação, Jacques. Imagine, se alguém entra e vê isso tudo assim. O que vão pensar de mim? Que sou suja, desleixada, ou pior, velha, feia? Você gostaria que pensassem isso de você?"
"Ninguém precisa dizer. Você é velha e suja. Não consegue se limpar, então sobra para mim, e olha que sempre tento, mas você quase nunca deixa. Prefere ficar gemendo que está doendo."
"Só porque você é um bruto."
Quando dizia isso, não pensava em mim. Pensava nas mulheres que ele já trouxera para cá, e nas feições de terror e dor que elas transbordavam na cama, quando ele achava se tratarem de prazer e júbilo, pobre dele, bruto na limpeza, bruto na cama. E lento, muito lento, na cama e na limpeza, que só agora terminava para então voltar até seu amante: o cigarro.
"Vai morrer." Não me calo, não me calo.
"Não pragueje. Se isso acontecer, você estará sozinha. E fedida."
"Já estou fedida agora, era melhor estar sem você."
"Se eu morrer, você morre também."
Jacques não media a distância das palavras, por isso não alcançava a realidade do que dizia. Mas eu me mantenho calma, sei que estou segura, e é esse conforto que ele busca ao sentar-se ao sofá, esticar as pernas, e ligar a televisão. Ou talvez o fizesse apenas para me confrontar, medir a minha distância, mas eu já sei como sou curta.
Ele muda de canais escolhendo algo, mesmo ignorando já ter escolhido antes mesmo de se sentar. Deixa nos desenhos, como de costume, tão óbvio e decepcionante, tentando alimentar sua criatividade, e por fim, acaba alimentando apenas a mim.
"De nada adianta assistir e reassistir isso. Nós dois sabemos que o que você produz é um lixo. Um lixo para criancinhas, pior ainda, vai infectar gente inocente incapaz de se defender de tamanhos insultos que são esses desenhos seus."
Minhas palavras são papel, costumam ser amassadas, mas quando pegas de mal jeito, cortam, e ele sangra, me vê por todos os ângulos dos olhos, sentindo raiva, sabe que estou dizendo isso apenas para feri-lo, mas não resisto a possibilidade de vê-lo sangrar. Esta é uma ferida aberta, essas palavras têm importância para ele, ele sabe a distância dessa dor, e eu coloco meu dedo, quero senti-lo palpitando, vivendo, quero vê-lo no limiar do sentimento, escorrendo essa tristeza, e vejo-a escorrer pelos olhos marejados, avermelhados de ódio contra mim, mas eu o amo, ele ignora mas o amo, quero saber que ele está vivo mesmo que doa, que ele está aqui, está comigo, e não tem outro aonde ir. Sou eu quem o acolhe, o esquenta, mesmo que com fogo, mas o esquento, sou seu abrigo, quem o cozinha para servi-lo a vida lá fora, um terreno pior que o meu. Mas o sentimento é massa flexível, toma formas de acordo com meu tato. Minhas palavras definem a cor de seu interior, que transforma-se conforme meu desejo. Sou eu quem o conhece, sou sua referência, sou eu quem vê seus trabalhos dia e noite atirados sobre a mesa, só tem a mim para confiar, por isso dói, minha verdade o caleja severamente, o tira de seu chão, de seu caminho, perde-se no ar demasiado rarefeito para sequer conseguir respirar, e assim afoba-se, acelera-se, se engasga com seu próprio medo, temendo minha opinião, a representação de si, mas ele não enxerga que o faço apenas para o bem.
"Você é imunda! Por que faz isso comigo?"
"Porque o sujo aqui é você. Você só não consegue enxergar. É isso que estou tentando fazer. Te mostrar que, no fundo, você não serve para nada."
"Você é minha! Eu te criei, você é minha! Você tem de me fazer me sentir bem! É pra isso que você serve. Você me serve. O que tem de errado com você!?"
"Para saber isso, você tem que se perguntar o mesmo. O que há de errado com você, Jacques?"
De todas as dúvidas que pairam sobre sua cabeça a todo instante, essa pergunta não emitia uma delas. Não havia dúvida aqui. Ele sabe muito bem a resposta para essa pergunta, por isso se cala, desliga a televisão e se vai em direção ao quarto, quando o telefone toca. 
"Alô? Oi Francisca. Hoje? Não sei, acho melhor não. Estou sozinho sim. Não, acho melhor deixar pra outra hora. Depois eu te ligo. Tudo bem, beijo, tchau."
Ele me ignora, me trata como invisível, como se nem sequer existisse. Mas sou o bem mais valioso de sua vida, ele vive dentro de mim, sou sua mãe quando não existe outra a qual amar. Como pode me ignorar? Me vê, fala comigo, mas não me cumprimenta, não se despede, nem me faz carinhos, e poucas vezes me traz alguma surpresa. Romântico como é, suas surpresas não ultrapassam uma torneira nova, uma fiação trocada, afinal, ninguém quer que eu morra queimada, esse crédito devo dar a ele. Mas não posso ser injusta. Recusou Francisca, imagine, para ficar comigo. Passará a noite comigo mais uma vez, e nada me alegra mais. 
Pousa o telefone de volta no gancho e me olha daquele jeito conhecido: com tristeza. No fundo, sei que nada o entristece mais do que estar comigo a sós. Em poucos instantes, ele teve de decidir entre ouvir Francisca e as multidões da cidade ou ouvir a mim, e de todos os males, o conhecido é o menor.
Entra no quarto, obviamente eu já estou lá. 
"Tão fraco que não consegue sequer sair."
"Eu já estou cansado. Por favor, me deixe em paz."
"Eu sou sua paz. Venha dormir em mim."
"Você apenas me diria quão impotente eu sou. Já conheço esse roteiro."
"Você é o diretor e roteirista. Eu apenas executo as falas."
 "Sim. E acho que eu preciso começar a te calar."
Sem que eu possa me defender, ele avança sobre mim. Toma impulso e se volta com um chute mais forte que suas pernas poderiam aguentar. Se machuca, mas não desiste. Me dá um soco, e sua mão sangra. Eu permaneço em pé. Ele corre até sua caixa de ferramentas, e tira de lá um martelo. Corre até o banheiro, e começa a destruir meus azuleijos florais, meus preferidos, mas me mantenho calma.
"Isso não vai me ferir, você sabe."
"Mas eu posso tentar."
Pedaços começam a cair estilhaçando-se com os movimentos brutos como ele é. Ele é baixo, é vil, e ignorante. 
"Minha força não está nesse concreto." Eu tento ilumina-lo, em vão.
"Eu faço isso pra te mostrar como eu te quero: desfeita. Desapareça!" E continua a martelar os azulejos, agora a pia do banheiro que vai ao chão, a banheira, tão querida. Mas ele não compreende que isso não me afeta, e insisto.
"Você não vai me calar. Você só está se ridicularizando, e você sente, sente crescer em você a vergonha, vergonha de si, de seus atos, de sua consciência, de seu pensamento. Tenta fugir de mim, mas não pode fugir de você mesmo. Sabe como essa situação é ridícula, e por isso insiste. Porque não tem mais o que fazer. Não tem poder sobre mim, e não tem mais o que fazer senão me ouvir."
De alguma forma, crio uma reação nele, por mais que inusitada.
Ele para.
Carregado de suor e raiva, ele toma fôlego por alguns instantes. Olha de fora a fora, pensando em cada parte poderia destruir, mas resigna-se. Ou pelo menos é o que eu achava.
Volta-se a cozinha e abre a porta da geladeira. Estica o braço e alcança sua garrafa de gim. Eu rio.
"Desistiu e agora vai embebedar-se para ver seus problemas desaparecerem."
Estranhamente, ele responde.
"Exato."
Começa a tomar gole após gole sem intervalo, dose dupla após dose dupla, em shot após shot, e quando vi, havia desaparecido quase um litro da bebida. Confesso não ter entendido, mas ele nunca quis que eu compreendesse. O que ele quis, em breve eu compreendi.
Foi até seu quarto e pegou todas as cartelas de seu remédio. Me lembrei rapidamente das diminutas palavras na bula proibindo sua ingestão com bebidas alcoólicas, e então ele ingere uma após outra até nada mais restar, nem outros remédios, nem outros venenos, nada, e eu não faço nada. Afinal, o que poderia eu fazer? Eu sou apenas uma casa.
Enfim ele se deita.
Continuo a dizer o quão fraco ele é, rasteiro, tento provocar alguma reação mas em instantes ele nem sequer me ouve. Cai num sono leve, e logo começa a sibilar alguns sons enquanto dorme. Começa a sonhar.
Seus amigos o chamaram para uma apresentação musical. É um local pequeno, pouco iluminado, a não ser pelo palco onde se encontra um de seus conhecidos ostentando uma guitarra. Francisca está ao lado, também sobre o palco. Eram todos conhecidos.
Jacques entra e acena para eles, que riem. Ele não entende, vai se aproximando deles, e eles riem cada vez mais alto, quando Jacques começa a tetear a si mesmo para se reconhecer, saber o que poderia haver em si de tamanha estranheza, quando suas mãos alcançam a altura de seu peito, e ao invés de sentir seu próprio corpo, sente algo fofo. Percebe então estar vestindo um colete salva-vidas, e então continua a tocar-se buscando algo adverso. Fazia todo o sentido estar utilizando um colete salva-vidas, se sentia seguro, estava preparado, embora não soubesse com certeza para o que.
Seus amigos começam a tocar músicas improvisadas sobre Jacques, "o patinho". Ele entristece-se, não entende o motivo de tamanha gozação, afinal, deveriam estes serem seus amigos. Percebe então que ninguém compartilha de seu mesmo pensamento, de sua forma de viver, percebe estar só em suas ideias, então, não havia outro caminho. Se volta para a saída e se vai, vestindo seu colete, em busca de si mesmo, e conforme anda por esse caminho, tudo vai se escurecendo, escurecendo, até não haver nada mais além de um silêncio.
Jacques não mais sibila, não mais respira. Enfim, conquista seu desejo, de silenciar-se. Cala-se, e com isso, cala-me pois, de fato, minha voz estava apenas em sua mente. Mas a tranquilidade é iminente, afinal, sabemos já que uma estória começa tão logo outra termina.
É assim, no fim, que ele se cria.
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