Cidade Fantasma

sexta-feira, fevereiro 16, 2007 § 0

A poeira no parapeito de uma janela. Ela continua aberta pela metade, do mesmo jeito que estava quando a abriram pela última vez.

O vento sopra forte lá fora, puxando as cortinas, fazendo-as dançar em ritmo frenético, ao som intenso da voz do vento, assobiando baixinho, bem agudo, elogiando a dança que observa atentamente com um de seus olhos.

O vento carrega consigo inúmeros olhos, que vagam pela cidade, assistindo a tudo. Com seus braços fortes, agita as árvores, querendo que dancem como as cortinas, mas elas não foram feitas para isso, e começam a resmungar contra o vento, emitindo um som seco, como folhas se chocando, e caindo na terra molhada. Terra molhada, que estava a admirar a discussão acima dela, concordando com o vento, porque estava brigada com a árvore desde que percebeu que ela nunca foi sua amiga; só estava usando-a para abrigar suas longas e irregulares caudas.

Havia cansado dali, e começou a andar pela avenida principal. Todas as ruas eram feitas de pura terra, o que dava a ela uma certa sensação de orgulho.

Admirava as construções ali localizadas. Grandes casas de madeira enfileiradas lado a lado, do começo ao fim da avenida. Esta era a cidade.

Não entendia bem o que acontecia em cada uma daquelas casas, mas já havia percebido que cada uma abrigava objetos diferentes dentro, que as pessoas entravam para levá-las. Eram, na verdade, lojas de comércio, intercaladas por casas convencionais, onde famílias numerosas costumavam se comprimir dentro.

Elas não gostava muito destas tais construções, porque nunca podia ver dentro delas. Todo chão era revestido de tábuas de madeira. Era, aliás, uma certa intriga entre a terra e a madeira, porque apesar de a terra poder ver praticamente tudo ao longo da cidade, era a madeira quem podia ver dentro destas lojas. A madeira, aliás, costumava sempre se vangloriar por isso.

Mas ultimamente, não pôde rir tanto. Suas tábuas haviam se tomado de poeira, e vivia sendo atacada por antropofágicos cupins. Não sabia mais o que fazer. Ela não sabia se cuidar sozinha. Sempre esteve sob os cuidados dos homens, mas desde que estes desapareceram da cidade, nada mais foi o mesmo.

Ninguém jamais soube o que aconteceu com os cidadãos. Nem os ventos, com seus incontáveis olhos invisíveis, nem a terra, que se alastrava pela cidade, dando superfície a tudo e todos. Desde que eles sumiram, a cidade havia entrado nos chamados Novos Tempos.

Por muito tempo, indagou-se quem tomaria o controle depois do Tempo dos Homens. Nunca se proporam a votar, porque aquilo nunca foi uma democracia. Mas quase todos concordavam na certeza de que seria a terra. Era uma das mais velhas e experientes, esteve lá desde a criação, e podia ver praticamente tudo, e desde que os homens desapareceram, ver dentro das lojas e casarões já não tinha importância, porque nada mais acontecia lá.

No dia em que todos acordaram, e viram que os homens haviam desaparecido, a terra já estava se tratando como a nova comandante. E foi, por algum tempo. Mas ainda havia um concorrente aos Novos Tempos que todos haviam negligenciado. Antes mesmo que a terra pudesse começar a fazer suas mudanças, já podia-se notar a estranha movimentação de alguém insignificante, até então.

Sem os homens para limpá-la e exterminá-la de todos os lugares, a poeira começou a crescer e se alastrar. Começou a tomar todos os lugares, se expandir em todos os cômodos de todas as casas, encrostar-se mais e mais nos objetos, quase como camuflando tudo do resto do mundo.

Ninguém esperava aquilo. Estavam todos chocados. E, numa cidade onde a chuva havia se cansado das intrigas e ido embora há muito tempo, somente o vento poderia tentar algo contra o ataque massivo da poeira.

Mas, onde havia poeira, não havia vento, e onde havia vento, não havia poeira. Assim, estabeleceu-se uma trégua. A cidade se dividiu em dois comandos: o ancião, mas ainda fortíssimo, vento; e a inteligente, mas subestimada, poeira.

Foi a trégua que se manteve por muito tempo, já que os homens nunca voltaram, nem nunca voltariam.

Os homens foram pegos numa cilada, planejada pelo ambicioso e egoísta mar.

Vendo a ganância dos homens, e seu crescente domínio, resolveu propôr a eles que viessem morar em sua casa. Argumentou que se sentia sozinho, abandonado pelas árvores, pela terra, até pela insignificante poeira.

Os homens, então, se aproveitaram da solidão do mar, para conquistar o segundo dos Três Reinos.

Migraram então para o mar. Foram, um a um, caminhando pelos tapetes de areia, entrando no abismo das águas.

Mas, eles haviam se esquecido que seu eterno aliado, o ar, era o eterno inimigo de seu irmão, o mar, e não seguiu-os para o fundo das águas. Nem sabia que os homens pretendiam tal coisa, e os próprios homens haviam se esquecido da longa briga entre mar e ar, e acabaram se perdendo nos longos corredores da mansão do mar, o eterno traiçoeiro que havia sido abandonado por todos. E continuaria assim, porque seu único aliado em muitas eras, o homem, enganou e matou em sua malevolência inexplicável.

Alguns diriam que os homens morreram sem conquistar o Terceiro Reino; diriam que conquistou o Reino da Terra, e morreu tentando conquistar o Reino das Águas, sem nunca conseguir conquistar o Reino dos Céus, eternamente cobiçado pelos homens, desde antes mesmo de se acostumarem com o Reino da Terra, o reino que lhes foi dado.

Mas eles conquistaram sim, tudo. Viveram na terra, perderam seus corpos nas águas, e dominaram os Céus com suas almas.

Enquanto a terra viveria eternamente sob as conseqüências dos atos dos homens, o mar se viu obrigado a fazer drásticas mudanças em sua imensurável mansão de água, agora que estava fadado a ter os corpos de todos os homens alojando seu reino. E, depois de tudo isso, a alma dos homens agora dançava pela imensidão dos Céus, num ritmo frenético, ao som intenso da voz do vento, assobiando baixinho, bem agudo, elogiando não a dança, que observava atentamente, mas a força do homem, sua vontade, mesmo que misturada com ganâncias e arrogâncias, porque, ainda assim, era uma determinação que ninguém jamais viu, ou veria novamente. Nem no observador vento, nem na esperta poeira, nem na experiente terra.

Era algo reservado aos homens, e a eles apenas.

Era isso o que os deu chances de conquistar os Três Reinos. E era isso o que os tornava aquilo que eram, aquilo que foram, aquilo que sempre serão.

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